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20 de novembro | Dia da Consciência Negra – a visão sobre preconceitos sofridos por uma pessoa negra com deficiência psicossocial

Publicado em: 14/11/2024


Sérgio é um homem de cor parda, usa óculos, barba e bigode grisalhos e está sério na foto.
O jornalista Sergio Gomes faz uma análise contundente sobre as consequências da invisibilidade da pessoas negras e com deficiência.

Eu sempre digo que não há pessoa negra ou parda que não tenha sofrido racismo, às vezes a pessoa é ingênua, desligada e por isso não percebe o racismo do cotidiano e é claro que ele interfere também no tratamento da esquizofrenia, pois as pessoas negras internalizam o racismo e sabem reconhecê-lo por mais sutil que seja.


Artigo escrito por Sergio Gomes, para o site da Câmara Paulista de Inclusão.


Escrevo para o site da Câmara Paulista de Inclusão há quase três anos e resolvi fazer esse artigo por estarmos no mês da Consciência Negra e isso é muito importante para mim, não apenas em novembro, e vou aproveitar esse espaço para contar um pouco da minha jornada como pessoa negra, LGBTQIAPN+ e pessoa com deficiência. Sou uma pessoa negra e com deficiência psicossocial, pois tenho esquizofrenia e sou deprimido, desde 2003, pelo menos esse foi o ano do diagnóstico. Faço parte da comunidade LGBTQIAPN+, porque sou bissexual, embora tenha ficado no armário até meus 45 anos, hoje tenho 47. Penso ser de grande relevância discutirmos um pouco sobre essas interseccionalidades. Como minha deficiência é oculta é muito comum para mim – e penso que para diversas pessoas com deficiência oculta – ouvir coisas como “Você não se ajuda” ou “Isso é falta de Deus” e de certa forma sou colocado em uma invisibilidade que pode atingir outras pessoas com deficiência.


Quando recebi meu diagnóstico de esquizofrenia descobri, pouco tempo depois, que era uma doença crônica e que eu teria que conviver com ela para o resto da minha vida, como é o caso da maior parte das pessoas com deficiência. Eu digo que descobri isso pouco tempo depois porque a psiquiatra que deu o diagnóstico não falou muita coisa. Na época eu cursava Design Gráfico na Unesp de Bauru, mas eu já estava com muitos sinais de que algo estava muito errado com minha mente, pois eu mal conseguia sair na rua só – e até hoje prefiro não sair desacompanhado. Meu foco, minha atenção e minha memória, para resumir, minha parte cognitiva ficou muito ruim e isso só piora com o passar do tempo. Eu nunca fui muito de esconder minha doença, mas diversas vezes, pessoas mal-intencionadas fizeram troça de mim, foram racistas, capacitistas e quando eu ia tomar satisfações as pessoas diziam que eu estava “viajando”, mas tudo que eles disseram foi olhando nos meus olhos, então não acredito que fosse um delírio e quando você é esquizofrênico, a carta “você está viajando” é o coringa do baralho dos mais variados tipos de gente preconceituosa.


Sobre o tratamento médico e a atenção dos profissionais de Saúde não posso afirmar que algum deles com quem lidei nesses mais de 20 anos tenha sido racista comigo, mas há, por parte dos profissionais que nos recebem, como recepcionistas, secretárias e outros profissionais que nos dão o primeiro atendimento, uma falta de conhecimento total sobre a esquizofrenia e como lidar com ela, como lidar com as pessoas afetadas por essa moléstia. Eu tinha plano de saúde, que era custeado pela minha família, que fez um esforço para que eu pudesse me tratar, contudo, desde 2019, eu me trato exclusivamente pelo SUS, pois ao passar dos 40 anos o plano de saúde ficou impagável. Pelo menos no caso da esquizofrenia, sou mais bem tratado no SUS, na UBS (Unidade Básica de Saúde) próxima a minha casa, pois como a medicação que eu preciso tomar é muito cara, preciso pegá-la na farmácia de alto custo, o médico que me atende é bem atencioso e competente, ele preenche toda papelada para eu pegar a medicação, coisa que eu não conseguia fazer quando me tratava na rede privada. Mas pessoas negras e LGBTQIA+ podem ter sim um acesso mais limitado a serviços de saúde mental de qualidade, devido a fatores como desigualdades sociais, racismo institucional e homofobia. Essa falta de acesso pode dificultar o diagnóstico precoce e o tratamento adequado da esquizofrenia. Eu sempre digo que não há pessoa negra ou parda que não tenha sofrido racismo, às vezes a pessoa é ingênua, desligada e por isso não percebe o racismo do cotidiano e é claro que ele interfere também no tratamento da esquizofrenia, pois as pessoas negras internalizam o racismo e sabem reconhecê-lo por mais sutil que seja e como os esquizofrênicos, mesmo quando estabilizados, como é meu caso, sempre têm um pé atrás a todos os momentos de interação social, por conta de microagressões que podem acontecer por ser negro, LGBTQIAPN+, ou pessoa com deficiência, no caso do esquizofrênico, costumamos ser assombrados  pela imagem de “doidinho”, “especial” ou “esquisito”, que podem somar-se a outros estigmas e potencializar todas as agressões e discriminações.


Outro estigma que persegue as pessoas com esquizofrenia é o de ser instável e/ou violento ou que não somos capazes de realizar tarefas cotidianas como trabalhar e ou estudar, nessa visão preconceituosa somos incapazes e isso me trouxe muitas dificuldades para conseguir ingressar no mercado de trabalho, pois fiquei anos sem conseguir trabalhar, enquanto era tratado com drogas ineficientes, por ser pobre e não poder arcar com os custos da olanzapina (droga antipsicótica que faço uso atualmente). Trabalhei por um curto período como teleoperador, mas é um trabalho muito estressante e que bagunça muito a saúde mental, imagine para pessoas que já têm problemas psiquiátricos, e tem a parte da remuneração, que é muito ruim.


O capacitismo, o racismo e outras formas de discriminação afetam fortemente a autoestima não apenas de pessoas esquizofrênicas, mas de todas as pessoas com deficiência e quando os problemas mentais se encontram com o preconceito racial e a LGBTfobia fica tudo pior e somos considerados incapazes por muitos, infantilizados.


Depois de muito anos sem estudar, eu voltei aos bancos da universidade em 2008, como eu não me via capaz de passar novamente em um vestibular para uma universidade pública e também não podia pagar uma particular resolvi procurar um programa social do Governo Federal para a educação superior, o Prouni e até fui bem na prova, na época  e ingressei no curso de Jornalismo, minha relação com os colegas de sala era boa, eu tinha bom desempenho, mas era comum me ausentar das aulas por motivos de saúde, de consulta médica ou por conta de sedação que eu apresentava. Na faculdade de Jornalismo eu tinha uma colega de sala que também apresentava problemas psiquiátricos, embora eu não saiba até hoje quais eram exatamente, mas um dia um colega de sala falou assim: “Essa história de ‘doença’ sua e da Fulana, para mim, é desculpa”. Não sei bem que desculpa seria essa, se tanto eu como a colega citada éramos melhores alunos que esse colega.


Nessas mais de duas décadas eu desenvolvi algumas estratégias para lidar com as pessoas no dia a dia e com as diferentes pelejas cotidianas e penso que algumas delas podem parecer covardes, como atravessar a rua ao encontrar um grupo de pessoas que julgo serem potenciais zombeteiros. Além de tudo isso que relatei acima, eu também sou uma pessoa muito tímida e isso só piorou com a experiência da deficiência e eu costumo nunca olhar as pessoas diretamente no olhar e, pelo menos para mim, isso ajuda bastante com as paranoias que podem advir do jeito como as pessoas te olham, das expressões nas faces delas, outras envolvem medicação e se não estivermos bem estabilizados com a medicação tudo fica bem mais difícil. Acredito que haja diferentes graus de esquizofrenia, como uma prima minha que, mesmo tomando medicação moderna, não consegue se estabilizar.


Como eu disse anteriormente eu já conheço meu diagnóstico de esquizofrenia há bastante tempo, mas só em 2020, ano do início da pandemia de covid, foi que eu descobri que era uma pessoa com deficiência, através do psicólogo da UBS, que também é bem mais competente e mais atencioso do que aqueles com quem eu me tratei na rede privada. É muito importante o papel da terapia no dia a dia do esquizofrênico, mas acredito que isso não mude muito entre pessoas com deficiência, somos por muito tempo tratados como pessoas inferiores ou incapazes, algumas pessoas desde o nascimento, então a autoestima das pessoas com deficiência pode ser muito baixa, e quando sua deficiência está na mente, ter uma boa relação consigo mesmo ajuda muito nas lutas cotidianas e é bem difícil quando não temos um corpo ou uma mente que estejam dentro de padrões, o ditos “normais”. Embora eu ainda não tenha conseguido estabelecer uma boa relação comigo mesmo, nem alcançado completamente a autoaceitação, esses são fatores importantíssimos na vida da pessoa com deficiência, pois é muito fácil cairmos em uma depressão e nos conflitos mentais que deterioram a saúde mental.


Todos esses anos de luta com a esquizofrenia, com os desafios, as barreiras, tudo só foi possível porque eu pude contar com a minha família e alguns amigos incríveis que me ajudam nessa caminhada e que eu já tenho uma amizade de 30 anos, como a Leandra Certeza. É importante nessa jornada também a Ivone Santana, diretora do Instituto Modo Parités e que me deu uma oportunidade quando todas as portas estavam fechadas e eu sou muito grato pela oportunidade de trabalhar com a Ivone, depois que passei a trabalhar para a Cãmara Paulista de Inclusão minha saúde mental melhorou, a minha autoestima também aumentou e é uma sensação muito boa se sentir parte de um trabalho importante e que respeita as minhas limitações. Sou grato por poder compartilhar um pouco da minha história com o público do site e apesar das dificuldades, temos que nos manter numa luta sem trégua, até porque os direitos conquistados pelas pessoas com deficiência, pessoas negras, indígenas e a população LGBTQIAPN+ estão sempre em perigo, graças àqueles que trabalham continuamente para cassar nossos direitos, como acontece, por exemplo, com a Lei de Cotas para pessoas com deficiência no mercado de trabalho, que todos os anos sofre algum tipo de ataque.


Uma vida que vale a pena ser vivida é uma vida com muito e constante aprendizado, e pessoas que desenvolvem alguma deficiência depois de adultos penso que têm maiores dificuldades para se aceitar e aceitar sua nova condição, mas como eu disse acima o aprendizado constante é necessário e com estudo, terapia, caminha-se para um autoconhecimento e uma autoaceitação, que cada um conquista no seu tempo.


SOMENTE JUNTOS


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